É madrugada de terça-feira para quarta, muitas pessoas estão no aconchego de seus lares dormindo o sono dos justos, outros trafegam na imensidão da madrugada, alguns por ocío do ofício outros nem tanto... De repente uma luz se acende na janela vizinha de cabeceira ilumina com um feixe objetivo a cama onde está, imaculado o corpo estirado de uma bela moça, deve ter lá seus 21 anos, jovem demais para o mundo e velha demais para seus conceitos de criança que não faz força para abrir os olhos para a maturidade, quase que como um monumento intangível. Sinto que não estou sozinha, há vida através dos espaços, até mesmo naqueles que alguns anos atrás eram considerados os corredores para o futuro, me refiro a internet, essa ferramenta bárbara através da qual podemos desbravar todo e qualquer tipo de terreno... Uma geografia feita sob medida para o movimento incessante que tem embalado nossas vidas. Minha, dessa menina a sombra da luz de cabeceira, dos doentes e aflitos que estão escondidos nos submundos e de nós seres bem confortados em nossas poltronas, em nossos medos e desejos, pensamentos e ações. Quero crer eu que a comunicação um dia fara companhia também para os ratos escondidos abaixo das grandes cidades, pois onde ela está ninguém a vê, mas sente sua presença. Não há como negar que vivo em uma realidade muito boa, navego através de um nó, de um fluxo, de um site, de um portal, falo mais de uma língua, conheço diversos países, sou extremamente ligado ao meu tempo, descolado e agitado, vivo em um momento frenético a cada instante que respiro e sorvo o mesmo ar. Bem voltando ao princípio, quer dizer ao ponto de partida quero lembrar que esta semana começa com um tom de reflexão. Não por ser mais um dia em minha vida, agradeço, mas meu apelo é outro. Venho me sentindo aflito, cansado, exausto desta realidade que eu começo a desnudar como um prelúdio. Sinto que sou um ser humano enfastiado de tudo de bom, não tenho grandes preocupações, nem doença que me impeça de viver saudavelmente, nem nada que atrapalhe o fluxo decorrente dos dias, mas me sinto vazio. Me sinto infinitamente vazio. Moro no século XXI que me conecta ao mundo mas me recruto ao meu eu, agora cabisbaixo para pensar... Me sinto hipócrita. Me sinto o homem mais mal agradecido do mundo, me sinto sujo, inescrupuloso, me sinto culpado, me sinto anestesiado, me sinto falso... Sou uma figura conhecida dos meus próprios escapamentos, tentáculos de defesa que estou diferindo a todo instante. Me sinto só, desacreditado no amor, e este mal estar é obra dos meus intermináveis conflitos internos. Ás vezes acredito de verdade que sou um homem adulto, que tenho minhas opiniões próprias meus gostos, minhas peculiaridades... Mas quando vejo meu reflexo no espelho não reconheço a imagem que se assemelha a mim, ou que é de fato minha face. Sei que também possuo uma sombra, mas ela está de licença. Quero reconhecer todas estas constatações perante alguém que possa me julgar como tal, quem será este alguém meu alter ego? Neste momento eu gostaria de ser a menina linda, deitada sobre seu leito, imaginando um príncipe encantado se apoderar de seu corpo e conquistar sua alma, pacientemente, e com a coragem e bravura de que se ouve falar nos contos de fadas. Onde a luz que incide sobre seu corpo a faz imaginar borboletas e bolhas de sabão voando pelo espaço, e sentir seu corpo deitado sobre uma relva verde ao lado do seu bravo guerreiro, que enfrentou o mundo para possuí-La em seus braços naquele instante eterno. Fecho a página de projeção de um conto de fadas ou de uma realidade otimista, para voltar ao julgamento de quem sou e de quem eu quero ser, perante alguém que vai me analisar e apontar o que eu de fato sou. Não quero ser o eu triste que trafega por entre os becos formados por nós digitais neste princípio de terça feira inchada. Estou providenciando um diurético para acalmar este alvoroço. Pretendo colorir algo quando o dia amanhecer, fazer o bem para alguém, não pronunciar uma palavra que sugira reclamação, ser coerente, compassivo, carinhoso comigo mesmo, com meu corpo e com a minha alma. Pretendo admirar a paisagem como bem faço todos os dias e através de uma ótica mais romântica problematizar o amor em versos, ou em olhares, ou em pensamentos bons. Quero acreditar que o amor existe, que ninguém é triste que na vida haverá sempre amor...E quero por um instante me sentir como se estivesse tomado por um sentimento de euforia que repentinamente me deixará radiante e me trará de volta o brilho e a juventude que eu possuo, a vida que corre por entre as minhas veias que clama por urgência com sede de mudança e vai de verdade urgir o despontar do dia com muita garra, pois só os que lutam para viver é que de fato sobrevivem. Neste momento, quero que como um lapso de memória nostálgico voltar ao balanço do quintal dos meus avós, e recordar o amor e o carinho e o tamanho cuidado que eu recebia naquele jardim. Eu florescia enquanto as velhas flores enterradas dentro dos vasos murchavam no decorrer da estação, e eu contornava meus melhores momentos com brincadeiras. Não existia praticamente nada, mas o circo era montado a comida era preparada, cozida e servida, as fantasias nunca perdiam o brilho mesmo impregnadas de naftalina e o chamar para o almoço era o melhor convite para saborear uma prato saboroso de cheirinho sem igual que confundia-se com o aroma de primavera, das flores de maracujá e das glicíneas, das pétalas das rosas caídas no chão e do néctar dos beija-flores. Existe alguém com um coração gigante, esperando por mim... Vou deitar a cabeça no meu travesseiro enquanto a moça apaga a luz de cabeceira e se encolhe para o lado para dormir e sonhar o reflexo da sua realidade. Enquanto a noite continuará a movimentar-se, a se fazer transito de idéias, pessoas, dramas e casos, e também de sombras que povoam os esgotos... E compunham um cenário real de vidas e de mortes e de ressurreições a cada início e término de dia.